sexta-feira, 2 de agosto de 2013

CANÇÃO DO VENTO E DA MINHA VIDA-2013

O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os sonhos
E as amizades…
O vento varria as mulheres…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.
Manuel Bandeira.
O poema acima foi tirado do livro Lira dos Cinquent’anos, publicado em 1940. Naquela época vivia o Brasil o clima da 2ª Guerra Mundial, porém sem a ela ter aderido. Este é o sexto livro do poeta, que já contava com seus 54 anos e já conhecera o verso-livre.
À época de sua publicação, Manuel Bandeira havia já assumido uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. O título apostrofado, relata o poeta, foi motivo de críticas de um amigo seu que “viu nesse título já um primeiro sinal de lamentável academização, e exprimiu em letra de fôrma o seu nojo”. (BANDEIRA, 1988, p.116)
Bandeira já conhecera o modernismo e fora àquela época um dos expoentes daquele movimento. Primando por um linguajar simples, Bandeira compõe “Canção do vento e da minha vida”, a partir do conceito da melopéia, que segundo Ezra Pound , é a musicalidade do poema.  Tal elemento pode ser visto claramente, tanto na quantidade de redondilhas maiores, quanto nas partes fixas do poema, que são os quartos e os quintos versos de cada estrofe:
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
Esses dois versos servem como contraponto à idéia central dos três primeiros, onde o vento varria seja as flores, os frutos, as flores ou mesmo os meses e os sorrisos da amada.
As estrofes são compostas de seis versos, sendo que os seis primeiros de cada uma delas é composto em redondilha maior, o que acontece também com os segundos e terceiros versos, com exceção do terceiro da 3ª estrofe: “O vento varria as mulheres”.
O quarto e o quinto verso de cada estrofe são fixos, sendo invariavelmente o quarto uma redondilha maior e o quinto, uma redondilha menor. Cabe então o verso livre ao sexto de cada poema – o que acontece apenas na terceira (De afetos e de mulheres), onde estão presentes seis sílabas poéticas e quarta estrofes (De tudo), com apenas duas.
Essa pouca variação métrica confere ao poema uma fácil musicalidade, podendo ser cantado em diversos ritmos, desde uma cantiga a uma samba ou até mesmo num rap. Daí se justifica o por quê de se intitulá-lo canção.
Os dois primeiros versos do poema são pontuados com vírgula, como se pode ver abaixo:
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
Esse recurso serve para dar uma pausa na leitura, para cadenciar o ritmo do poema – o que acontece também na segunda estrofe:
O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
Ao ler o poema em um compasso musical quaternário, poder-se-á perceber que a vírgula funciona como um primeiro tempo em que se reinicia a contagem do compasso.  Porém, isso não acontece na terceira estrofe, marcada pelas reticências no segundo verso, que sugerem um prolongamento daquele tempo:
O vento varria os sonhos
E as amizades…
Aqui fica clara a intencionalidade do poeta em dar um prolongamento à varredura do vento ao usar as reticências, uma vez que o primeiro verso não é pontuado. O vento não cessa de fazer sua ação, ele a continua – o que se pode ver no verso posterior.
Os dois primeiros versos da última estrofe também manterão esse ritmo contínuo, como se pode ver abaixo:
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…
Porém, ao contrário da estrofe anterior, esse movimento será encerrado no terceiro verso com uma exclamação ‘O vento varria tudo!’. O compasso nesse momento se encerra, assim como a idéia de tudo ser varrido pelo vento.
O ponto final nos últimos versos  funcionam justamente como uma delimitação  daquelas ações contrapostas, guiando o leitor para outras ações que não se ligarão a nenhuma daquelas anteriores, com exceção do último ponto final que resume todo o poema, unindo todas aquelas antíteses.
Uma particularidade desse poema é que ele possui 119 (cento e dezenove) palavras, contando com o título, porém, poucas delas são diferentes. A palavra vento precedida do artigo o, por exemplo, aparece dez vezes (três vezes na 1ª e 2ª estrofes e duas vezes nas duas últimas), assim como o verbo varrer no seu pretérito imperfeito, que aparece por outras dez vezes, seguindo a mesma repetição do substantivo vento.
Já as palavras folhas, flores, frutos, aromas, mulheres e tudo aparecem por duas vezes no poema, sendo que as outras coisas que o vento varre são substituídas por vezes, por sinônimos como no caso de músicas (cânticos), luzes (estrelas) ou mesmo sendo omitida, em que meses, sorrisos, tudo se resume apenas pela palavra tudo.
Os artigos os e as por sua vez, se somados, aparecem por dez vezes no poema (os, quatro vezes e as, seis – o que é o mesmo caso da palavra ‘e’ que por vezes aparece como conjunção aditiva, em outras, adversativa). Já a preposição de, aparece por nove vezes, sendo que esta possui outra particularidade: nas duas primeiras estrofes contabiliza três aparições, na terceira duas e na quarta, uma. Parece ela resumir em si um ritmo, além de uma gradação para baixo, que se contrapõe ao poema, em que o penar aumenta à medida que é escrito.
Algumas imagens podem ser suscitadas pelo poema, como o cair das folhas, flores e frutos como na primeira estrofe, em que a aliteração das letras ‘v’ e ‘f’ nos remetem à força do vento, que começa mais brando e depois derruba tudo. Nessa primeira estrofe ainda podemos ver uma gradação que se inicia meio fora de ordem como folhas, frutos, flores, mas que depois se inverte em frutos, flores, folhas.
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
Na segunda estrofe o vento varre as luzes, as músicas e os aromas, que, no entanto, enchem sua vida. Cabe, no entanto, uma particularidade: as luzes são substituídas por estrelas, que lhe conferem um sentido metonímico, assim como as músicas são substituídas pela palavra cânticos, que traz mais beleza poética à “Canção do vento e da minha vida”. A aliteração do vento, assim como sua anáfora, que estavam presentes na primeira estrofe aqui também podem ser encontradas.
Já a terceira estrofe parece trazer uma nova formatação ao poema; as aliterações e anáforas das primeiras estrofes, que serviam para fixar aquela estrutura, agora já não estão presentes.  Pode-se sentir aqui uma certa tristeza do poeta ao dizer que o vento varria os sonhos, as amizades e as mulheres que são coisas tão particulares e que foram-se perdendo com o tempo. Enquanto nas outras estrofes  o que se perde é impessoal como flores, folhas, frutos, aromas, músicas e luzes, aqui não: os sonhos são únicos e intransferíveis, assim como as amizades e as mulheres, que podem ser parentes ou amores.
Na última estrofe, uma mescla do particular (teus sorrisos) e universal (meses e tudo), em que o poeta resume tudo o que foi perdido e que ele ganhou.
Não à toa, Lira dos “Cinqüent’Anos” é um marco pessoal para o poeta por ser o primeiro livro a ser editado por uma editora, como o próprio Bandeira afirma.
A tiragem da edição de 40 foi de 2.000 exemplares. Em 44 ela estava esgotada e pela primeira vez na vida recebi de uma casa editora proposta para edição dos meus versos. A editora foi a Americ-Edit, do francês Max Fischer. A edição, de 2.000 exemplares em papel comum e 65 em papel de linho .
No mesmo livro, podem ser percebidas poesias menos metrificadas como “O exemplo das rosas”, “A morte absoluta” e “Maçã”. A seguir, um trecho deste último.
Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o
[ cordão placentário
És vermelha como o amor divino .
Porém o poeta também se rende a formas mais tradicionais como o soneto e às métricas mais formais, como ele mesmo nos relata.
Nessa edição o livro Lira dos Cinqüent’Anos vinha aumentado de 18 poemas, um deles de 1930 (“Dedicatória”). O soneto em louvor de Augusto Frederico Schmidt foi o único que escrevi à sua maneira, isto é, em versos-livres e sem rimas, e fi-lo assim para acentuar a minha homenagem, como se quisesse mostrar em mim ao poeta e a todos a marca de sua garra .
“Canção do vento e da minha vida” é uma mostra da madureza poética de Bandeira. Ao utilizar-se de formas tradicionais como as redondilhas e também o verso livre sem, no entanto, perder o ritmo do poema, o poeta nos oferece toda uma leveza dessa canção, tão melancólica e esperançosa.
Porém, tendo-se em vista, o contexto em que o poema foi publicado, ele pode sugerir duas interpretações: uma mais particular, outra mais universal.
Já no início do poema vemos o poeta falar que o vento carrega flores, frutos, folhas. Seria esse vento mesmo o tempo ou seria a guerra que tinha levado as flores (os jovens), as folhas (os mais velhos) e os frutos (as crianças). Em Testamento, Bandeira diz:
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei.
Questão resolvida, em ‘Canção do vento e da minha vida’, o poeta supera todas as tristezas e perdas, ainda que por tempos tenha convivido com um mal quase incurável: a tuberculose. Com seus mais de cinqüenta anos, perdera seus entes queridos, mas ganhara muitos amigos; ao mesmo tempo em que perdia o viço da mocidade, como na segunda estrofe, mais experiência (aromas), mais luz (estrelas) e mais músicas (cânticos) ganhava. Esses últimos talvez por Vila Lobos e tantos outros compositores que musicavam seus poemas.
Se ele perdia sonhos e amizades com o tempo, como perdera a de Mário de Andrade, um grandioso amigo, assim como as mulheres de sua vida, como a mãe, a irmã, ele ganhava outras amizades femininas e outros amigos também de grande estima.
Se o tempo levava os meses, os sorrisos e tudo de tantos, ele mais ganhava prêmios, amizades, sorrisos, reconhecimento assim como em idade.
O poema poderia ser melancólico, desesperançoso. Porém, esta não é a marca de Bandeira. Ele não se abate com os sofrimentos, suportando-os com resignação e humildade. E mais que isso, transforma tudo em poesia, conferindo como que uma magia a seus versos, relatada por Rachel de Queiroz na introdução a Estrela da Vida Inteira.
Li aí num jornal que Manuel “além de grande poeta”, era um homem que sabia fazer amar – e eu não sei se isso é propriamente a verdade. Acho antes que esse dom que ele tem de se fazer amado, essa ternura que desencadeia nos peitos mais ásperos e menos amadores, decorre propriamente da sua poesia, é elemento de sua poesia, vem daquela força que  ele tem de descobrir o coração da gente e o segurar na mão. O amigo que o abraça, a mulher que ele ama ou amou, o leitor que se comove ante um verso, será que obedecem todos à mesma emoção, não foram sugestionados pela magia poética, pelo dom misterioso e terrível?
E é essa doçura, essa magia que ele nos oferece com “Canção do vento e da minha vida”, deixando-nos a lição

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